Procure o seu conforto

Olá Doçuras!

domingo, 20 de maio de 2012

20 de maio ♥


Onde andará Dulce Veiga

Passava da meia-noite. Era meu aniversário, lembrei. (...) Fiquei ali sentado, ouvindo. Dulce cantava novamente aquelas canções desconhecidas. Além da lua, das estrelas e coisas assim, do espaço sobre nossas cabeças, percebi que falavam também de seres da terra, escondidos entre as árvores, na fundura das grutas, nas curvas dos caminhos. Ela disse: − Força e fé, repete comigo: dai-me força e dai-me fé, dai-me luz. Eu pedi: − Força e fé. Dai-me força, dai-me fé e dai-me luz. Dulce perguntou se eu queria cantar junto com ela. Disse que não, eu preferia ficar ouvindo. Eu não sabia cantar, expliquei. No mesmo momento, sem ouvir o que ela dizia, e talvez não dissesse nada, apenas cantasse, uma estrela cadente riscou o céu. Pensei em fazer um pedido, era meu aniversário. Mas não tinha nada para pedir. As coisas vivas, pensei, as coisas vivas não precisam pedir. (...) Eu perguntei: − Você não quer voltar? Ela disse: − Nunca mais, eu sou feliz aqui. Eu perguntei: − Mas o que você quer, afinal? Ela sorriu: − Além de cantar? − Mais além. − Nada além: eu quero encontrar outra coisa. Mas você já encontrou, pensei.  Um galo cantou na distância. Perguntei: − Esse é o Frank Sinatra? Dulce riu, me estendeu a xícara de café recém-passado: − Esse não é meu, ainda não tem nome. Quando terminei de calçar os sapatos, ela me alcançou algo que a princípio parecia um novelo, uma bola de lã, de neve quente. Era um gatinho branco, olhos verdes da cor dos dela, focinho cor-de-rosa. − Para você, é seu aniversário. Este é o Cazuza, cuide bem do príncipe. Mas nem contei nada, pensei. − Não sei se eu vou saber − eu disse, o gatinho nas mãos. − Saberá sim, não é difícil. Me beijou dos dois lados do rosto, depois na testa. − Já sabe o caminho, volte quando precisar. − E o que eu digo a eles? Ela me levou até a porta, eu comecei a descer os degraus de madeira. − Diga o que você quiser, faça o que você quiser. Não diga nada. Se achar melhor. Minta, não será pecado. Mas se contar tudo, não se esqueça de dizer que eu sou feliz aqui. Longe de tudo, perto do meu canto(...)

Ah Força do que Existe, ajudai-me, vós que chamam de o Deus.
Clarice Lispector: Água viva

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